segunda-feira, 25 de julho de 2011

Quem conhece ama

“Lembrai-vos dos encarcerados como se preso com eles;
dos que sofrem maus tratos, como se, com efeito,
vós mesmos em pessoa fosseis os maltratados” (Hb 13.3).

Pink Floyd foi um grupo que fez muito sucesso nos anos
80. Seu líder, Roger Waters sempre foi conhecido pelo seu
temperamento forte e por suas “loucuras”. O filme “The Wall”,
produzido por ele é cheio de imagens psicodélicas, angustiantes,
e claramente rodado sob pesadas drogas alucinógenas. Até
agora, era essa a imagem que eu tinha dele. Porém, nesses
dias vim a conhecer um pouco de sua história. Nasceu na
Inglaterra em meio à 2ª Guerra Mundial, filho de um soldado
que não o viu nascer, enquanto servia na Itália junto ao exército
inglês. Para escapar dos bombardeios alemães sobre Londres,
sua mãe enviou o filho para um lugar seguro no interior onde
permaneceu com outras crianças até o final da guerra.

Alguns anos depois, quando fogos e festas anunciavam
o fim dos combates, os pais foram buscar seus filhos naquele
lugar. Aquele garoto viu seus amigos um a um serem levados,
menos ele. Seu pai não veio, e pela primeira vez teve a clara
consciência de que perdera o pai sem nunca tê-lo conhecido.
Sentiu-se abandonado e sozinho, e esse passou a ser um
tema obsessivo em suas canções. Waters tem passado a vida
procurando o pai ausente num mundo frio e inóspito.

Essa leitura que fiz me aproximou dele, mesmo sem
conhecê-lo. Quando nos aproximamos das pessoas, de seus
dramas e de suas histórias, nossa visão muda. Identificamos-
nos com elas. Descobrimos nelas companheiros de viagem.
Descobrimos também que se trata de garotos e garotas
assustados como nós, buscando um sentido no mundo,
convivendo com a nostalgia de um Pai ausente.

Há alguns dias recebi um telefonema do hospital onde
prestamos capelania. Queriam minha presença urgente
para falar com um paciente que estava muito revoltado e
descontrolado. Corri para lá, e quando entrei no quarto percebi
alguém de maquiagem forte e unhas pintadas. Era um travesti.
Apresentei-me, estendi-lhe a mão, perguntei seu nome, e disse
que estava ali para ouvi-lo e ajudá-lo. Após uma hora inteira de
conversa ele havia se acalmado e eu já conhecia um pouco da
vida do Edson (nome fictício), de sua família, seus temores e
sonhos, seu desvio da fé, as portas que lhe foram fechadas... já
não via mais alguém travestido do sexo oposto, porém um ser
humano digno, embora fragilizado, alguém como qualquer outro
buscando encontrar o centro do seu ser.

Quando nos aproximamos do outro em amor, desaparece
o que nos causava espanto, raiva, ódio, perplexidade, para dar
lugar à pessoa. Não é justamente isso que Jesus fez em todo o
seu ministério? Ao jovem rico que só pensava em sua fortuna,
Jesus “fitando-o, o amou” (Mc 10.21). Diante do Mestre já não
era mais uma “samaritana”, nem uma “mulher” junto ao poço,
mas uma pessoa que ele conhecia sua história e, a despeito de
seus erros, a amou.

Vivemos num mundo cercado de muros que nós mesmos
construímos. Jesus Cristo veio para quebrar as paredes
de separação para nos aproximar uns dos outros. Cristãos
deveriam também parar de erigir muros para construir pontes.
O Evangelho nos desafia: se amais os seus pares, seus
familiares, os que lhe são agradáveis, que recompensas tendes?
Aliás, não precisa ser cristão para amar os seus iguais.

Permanecer junto a quem nos é igual e fechar-se num
grupo, num partido – seja religioso, político ou étnico, é o
caminho mais fácil para desenvolver na alma um sentimento
de oposição, de medo, e é o estopim para um mecanismo de

defesa chamado “projeção”, que nada mais é que jogar sobre
o outro todas as mazelas indesejadas ou rejeitadas – mas não
admitidas – que estão presentes em nós.

Palestinos e judeus que vivem separados por um muro,
odeiam-se mutuamente. Árabes e judeus vivendo em Jerusalém
ou qualquer outra cidade do mundo, quando se conhecem,
vivem amistosamente sem animosidades.

A intolerância diante do pecador é uma das posturas mais
inadequadas que um cristão pode ter. Igreja que não ama
ao pecador abandonou sua principal missão. Não se trata de
condescender com o erro ou pecado, mas de colocar-se ao lado
e dizer: “sei como você se sente, porque conheço também meus
pecados e é justamente por causa deles que estou aqui; por
isso estarei ao seu lado se precisar de mim”.

–“Mas pastor, Jesus disse à pecadora para ela ir e não
pecar mais”. É verdade, só que isso é interpretado de duas
formas: para “nós” é um tratamento a longo prazo, onde Deus
vai nos tratando e curando ao longo da vida. Para o “outro” é
exigido que ele obedeça imediatamente, mesmo quando ele não
tem forças para isso.

Aproximar-se
das
pessoas,
ouvir
suas
histórias,
desenvolver empatia por elas, e colocar-se em humildade nas
mesma condições, permite que olhemos o mundo com os seus
olhos. Esta é a postura que Deus espera de nós! “Lembrai-vos
dos encarcerados como se preso com eles; dos que sofrem
maus tratos, como se, com efeito, vós mesmos em pessoa
fosseis os maltratados” (Hb 13.3).

Talvez nosso maior desafio seja o de conhecer o outro.
Enquanto são desconhecidos, eles nos assustam e são alvo de
nosso julgamento. Somos capazes de amar somente quando o
distante se faz próximo.

Olhei ao longe e vi um animal caído na estrada. Cheguei
mais perto e vi que era um ser humano. Abaixei-me e reconheci
o meu irmão.

Daniel Rocha, pastor
dadaro@uol.com.br